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Da minha janela...

 

Por Amélia Costa, Sílvia Junqueira, Sónia Pinto e Rosa Pereira

"Da minha janela" foi um dos temas propostos como exercício de escrita criativa de uma formação que alguns dos nossos professores frequentaram nos meses de setembro e outubro. Este texto foi escrito a "quatro mãos", quatro textos que, à posteriori, foram unidos pela professora Rosa Silva...


Da minha janela...

Sábado. 07:17 da manhã. Mais um sábado de trabalho. Que inferno! Mas quando conseguirei descansar? Este excesso de trabalho está a sugar-me a réstia de vida! Vida? Mas que vida? O silêncio, deste lar de 5, a um sábado de manhã, diz-me que não tenho vida! Sentada ao computador, desvio o meu olhar para a esquerda, onde junto à vidraça de uma janela alta e luminosa (hoje, porque ontem estava cinzentona…) vejo a minha orquídea, oferecida pelos meus filhos no Dia da Mãe; já teve melhores dias, a orquídea, agora parece pouco a pouco, preparar-se para outros tempos, mais frescos… avanço o olhar e observo a relva e algumas flores coloridas–alegrias da casa, explicou-me a florista -, que ainda se regozijam pela chuva de ontem… um pouco mais e o meu olhar encontra, já do outro lado da estrada, o carro do meu filho (que por estes dias percorre as ruas de Instambul) estacionado sob a doce e velha figueira da vizinha Maria, também ela velhinha e doce; ramos carregados de muitas folhas e alguns figos que, com calma e resiliência, teimam em crescer … daqui a pouco, atravesso a estrada e colho alguns: são tão, mas tão bons! Ao lado da figueira que domina o meu olhar, um telhado alto e vermelho, uma chaminé sob um céu azul (hoje, porque ontem estava cinzentão…) que me faz querer sair e … apanhar sol e ar e vento e… alguns figos! (Sílvia Junqueira)

Sorrio melancolicamente, pois tenho a certeza de que não me vou levantar para colher figos… que pena! São tão saborosos… mas o trabalho não se faz sozinho! E em vez de ir colher figos, levanto-me para fazer café. Abandono a janela da sala, com as suas doces promessas, e vou para a cozinha.

Ligo a máquina e sorrio tristemente. Volto a pensar nos miúdos. Os mais novos devem divertir-se muito no parque, mesmo tendo saído de casa de madrugada! Que bom! Ar livre, brincadeiras, piquenique e sestinha debaixo da árvore verdejante. Sempre gostei destes sábados em família e em comunhão com a natureza. Infelizmente, já não vou com os miúdos ao parque há algumas semanas. O prazo de entrega da primeira versão da tradução aproxima-se a um ritmo galopante e a editora não permite deslizes. Não posso falhar! Nem pensar! Se quero ser uma das principais tradutoras da Tinta da China tenho que continuar a trabalhar arduamente, fins de semana, inclusive. E o dinheiro também faz falta! Depois de Istambul para onde é que o mais velho quer ir? E os outros dois, a crescer tão depressa… Mais um sábado sozinha…

Sacudo a cabeça para afastar pensamentos transbordantes de impotência. Olho pela janela da cozinha e vejo o meu pequeno jardim das traseiras, atapetado com aquilo que ainda se pode chamar de relva e rodeado pelas minhas trepadeiras de amora e framboesa que, na sua generosidade, ainda me presenteiam com os seus frutos. Levantando os olhos, vejo as casas dos meus vizinhos, iguais à minha, variando na decoração dos seus alpendres, uns mais coloridos que outros. (Sónia Pinto) Penso no que é que os meus vizinhos irão fazer hoje. Ou amanhã. 48 horas de pleno deleite familiar. Certamente, não vão estar agarrados a uma tradução em pleno sábado de manhã…. Tão cedo! 7:28 horas! Tremo com um arrepio. Volto-me para a máquina de café, a minha companheira de maratonas literárias, e peço-lhe o mais delicioso café matinal. O primeiro de muitos. O som da corda no alpendre da casa ao lado chama a minha atenção para as moradias de quem ainda dorme.

Olho para baixo e vejo a minha vizinha Lena que, apressadamente, já estende a roupa colorida da Carolina. Sim, porque aos sábados terá de abrir o seu gabinete, onde senhoras com as suas mãos elegantes procuram abrilhantar as suas unhas. Não me poderei quedar por tantas observações, pois, ao fundo, vejo a mata onde os odores da humidade noturna me convidam à sua entrada. Nela, os pinheiros encobrem o silvado, onde amoras silvestres me avivam o paladar. Visto-me, mas antes não resisto a tirar uma foto da minha janela ao momento em que o sol nasce e fortalece o meu dia… (Amélia Costa)

Delicio-me com esta maravilha da natureza enquanto degusto um cremoso café de recordações amargas. Este tem que ser o último fim de semana sem a família! Tenho que quebrar esta rotina que me angustia. As vozes dos miúdos bailam nos primeiros raios de sol. “Hoje vens connosco? Por que não? Vais trabalhar outra vez? Porquê?”. O som da desilusão patente naquelas vozes cheias de esperança! Não posso continuar a roubar a minha presença aos meus. Eles precisam também de mim! Precisamos de tempo de qualidade agora, enquanto eles ainda desejam a minha companhia sem reclamações ou chantagens sociais. Crescem tão depressa! Em breve, vão voar alto… Para lá de Istambul? Para onde quiserem, sem limites!

Resignada à solidão e ao trabalho, decido ir para o escritório mergulhar nas palavras inglesas que me aprisionavam o corpo e a alma. Ia ser difícil, mas teria que continuar! Pela minha, nossa, saúde mental e afetiva.

As horas passam a correr. Os meus olhos continuam embrenhados naquela tempestade de palavras. Os meus dedos correm pelo teclado do computador como que a tentar bater o record de Usain Bolt. E pestanejo. Muito. Com a mania de não usar óculos, decidi-me pelas lentes de contacto. Acho que não foi uma boa escolha. Dói-me a vista…

Pilhas de chávenas vazias e pratos cheios de migalhas relembram-me que não fiz uma única refeição decente. É o preço a pagar pela vontade de terminar a tradução. Todos os meus músculos se reúnem num esforço hercúleo para não abandonar a mente. Só mais uma hora. Só mais uma hora. E outra. E outra. Não as contei…

Um pequeno sorriso escapa-se-me dos lábios. Os miúdos chegaram deliciados, mas de rastos. Banho, birra, jantar, birra, televisão, birra, história, birra e cama, sem mais birra. E eu sempre na luta contra o tempo. O tempo… inimigo da felicidade. A felicidade precisa de mim para vencer. E eu vou ajudá-la. Agora.

7:28. Domingo. Depois de castigar o corpo e a mente, consegui terminar o trabalho que tinha destinado para o fim de semana. Já não era sem tempo. Hoje, finalmente, vou ter o tempo de felicidade tão desejada.

Olho pela janela do exíguo escritório que me acolheu nestas últimas largas horas e vejo as copas dos pinheiros verdejantes que oscilam com o vento a tocar o azul do céu salpicado pelo branco das nuvens. Mais perto do olhar, ao nível do parapeito, vejo dois gatos brincalhões a saltar os muros amarelos para virem cumprimentar a lenta tartaruga que habita nas águas translúcidas do lago do meu quintal rodeado por relva macia. Os três tocam-se, numa espécie de cumprimento matinal, antes de cada um prosseguir o seu caminho de inconsciente felicidade. (Rosa Pereira)

Ah! A felicidade! Essa marota que teimava em esconder-se de mim! Hoje não! Hoje ela não me escapa, porque também eu vou prosseguir o meu caminho.

Rosa Pereira
26 de setembro de 2020

Ilustração: Paulo Rodrigues